sábado, abril 5

Turismo de Saúde

O turista acidental, os profissionais ‘acidentados’ e os malabarismos discretos e ‘seguros’…
Uma espécie de ‘delírio da internacionalização’ parece contaminar impiedosamente alguns sectores da saúde através da descoberta de uma nova via de expansão e diversificação da oferta turística que parece mobilizar vários operadores nestas áreas (saúde e turismo), sob a batuta de um recém formado ‘cluster’ link.
Nada a opor a esta aposta se tivermos em consideração as realidades do País, não mistificarmos expectativas e tornarmos o ‘jogo’ transparente.
O ‘turismo de saúde’ não é uma actividade desconhecida, nem inédita, em Portugal. Remonta, no âmbito interno, aos memoriais tempos da ocupação romana que difundiu o termalismo. ‘Ir a águas ou a banhos’ foi um importante entretimento de vilegiatura das classes mais abastadas (burguesia urbana e rural) durante os séculos XIX e primeira metade do XX, permitindo o convívio social e busca de alívio para ‘maleitas’ de vária ordem. Tornaram-se famosas muitas das estâncias termais espalhadas pelo País (Aregos, Cabeço de Vide, Caldas da Rainha, Caldelas ou Taipas, Chaves, Caldas da Saúde, S. Jorge, S. Pedro do Sul, Monchique, S. Vicente, etc.). Múltiplos tipos de tratamentos eram aí praticados desde a hidroterapia, talassoterapia, crenoterapia até a simples hidropinia (o popular ‘ir a águas’), até às actividades sócio-culturais: tertúlias, saraus e bailes. Até que a partir da 2ª. metade do século XX a tecnologia hidrotermal (duches, jacúzis, massagens, banhos, etc.), os ‘health clubs’, aliados à proliferação de SPA, ‘deslocaram’ as termas do seus recônditos e aprazíveis nichos geográficos naturais para as climatizadas caves dos ‘estrelados’ hotéis das grandes cadeias internacionais.
O ‘turismo de saúde’ existiu, também, pelo menos desde o séc. XVIII (caso do hospital-sanatório rainha D. Amélia/Funchal) e conheceu um excepcional crescendo no final de séc. XIX e início do XX, primeiro na Madeira, estendendo-se depois à Guarda e ao Caramulo, para o tratamento da tuberculose, na ausência de medidas terapêuticas eficazes. Tratou-se em termos económicos de uma ‘resposta concorrencial’ aos sanatórios da Suíça e dos Pirenéus, na exploração de virtudes e especificidades climatológicas. A descoberta da vacina (BCG), que começou a ser administrada em seres humanos em 1921, o aparecimento da estreptomicina (descoberta em 1943) veio determinar o desmantelamento deste mercado de ‘turismo de saúde’.
Estas actividades imbuídas de algum espírito empírico, artesanal e muitas de âmbito familiar foram inexoravelmente destronadas pelos avanços da tecnologia (farmacêutica, hidrológica, balneoterápica, massoterápica, etc.), inovações que não fomos capazes de integrar nas instituições e empresas até aí existentes.
Neste momento, estamos face a um ‘novo’ projecto de ‘turismo de saúde’ virado para a exportação e encaminhado para um ´programado’ sucesso empresarial.link.
O que seria desejável é que este projecto e/ou esta estratégia não assentasse num modelo pouco explícito (em termos de oferta), ou em âmbitos nebulosos (no pantanoso terreno da qualidade) e, recorrentemente, embrulhado em indefinições semânticas.
Em primeiro lugar convinha definir (balizar) o que se entende por ‘turismo médico’, por ‘turismo de saúde’, ou, a mais recente designação adoptada, ‘turismo de bem-estar’ (benefit tourism).
Deixando de lado a agregadora definição de saúde da OMS que engloba uma concepção vasta e inclusiva assente no ‘bem-estar’, quando nos atemos ao campo de actuação da ‘indústria turística’, há diferenças substanciais entre as possíveis vertentes e, como é óbvio, diferentes tipos de ‘oportunidades’.
Se nos fixarmos no ‘turismo médico’ verificamos que esta tem a ver com situações específicas. Primeiro, a ‘não-cobertura interna’ para as intervenções desejadas (≠ de desejáveis) seja por não estarem cobertas pelos planos de seguros de saúde ou fora das comparticipações dos sistemas públicos (nacionais ou regionais). Em segundo lugar, existe um ‘ business leitmotiv ’ que é o custo das intervenções a efectuar, i. e., o fluxo de procura move-se no sentido dos baixos custos (‘low-cost’). Um terceiro vector, diz respeito à referenciação profissional e tecnológica dos prestadores onde ocupa um lugar central a qualidade e os resultados dos serviços a ‘exportar’. Finalmente, quando se trata de intervenções de âmbito cirúrgico, as performances técnicas exigem ‘saídas rápidas’, onde emerge a questão do ‘follow-up’, por vezes difícil de conciliar com o carácter sazonal e fugaz que caracterizam as deslocações ‘turísticas’ e a existência de legislação permissiva em relação aos erros e negligências dos actos médicos (que retira segurança ao turista/doente).
A expansão deste no mercado exportador está, portanto, associada a questões complexas de modelo e estruturais. Algumas delas brigam com a ‘cultura médica’ tradicional existente no nosso País e a capacidade de transpor (adaptar) respostas dominadas pela universalidade (concepção do sector público/SNS) para excepcionalidades que informam as ‘respostas turísticas’, enquanto actividade exportadora.
No meio deste ‘frenesim’ foram proferidas afirmações que fazem soar campainhas de alarme de que é exemplo paradigmático a seguinte tirada: “O diretor executivo do Health Cluster Portugal (HCP), Joaquim Cunha, disse hoje à agência Lusa que, "de facto, há um potencial e não precisa de investimento, ou seja, os hospitais que [o país] tem chegam e neste momento, quer da parte pública quer da privada, há uma oferta excedentária". link.
Desconhecemos se o director do HCP foi buscar esta certeza (oferta hospitalar excedentária) ao ‘relatório Mendes Ribeiro’ link ou se trata de uma inabalável crença. No que diz respeito à ‘parte pública’ nada está definido em questões de ‘oferta’. Sabemos que para além de um constante questionar da sustentabilidade financeira da rede hospitalar pública, no que diz respeito às questões de referenciação e resposta, tudo está em suspenso ou subtilmente diferido para 2016 link.
A situação da rede hospitalar nacional revela – nos últimos anos – cada vez mais incongruências, insuficiências, incapacidades que, ao contrário do que o HCP julga, condicionam determinantemente as respostas e afastam-se de uma cabal satisfação das necessidades internas. Entre eles seria de salientar a brutal queda no investimento em inovação técnica e na formação e as inevitáveis consequências quando se levantam questões de competitividade (venda de serviços ao exterior). Na verdade, só no plano da abstracção e do delírio se pode considerar que existe no terreno uma ‘health care industry’ pronta para funcionar concorrencialmente num mercado globalizado, com uma produção abrangente: capaz de satisfazer a procura interna e, ainda, de exportar serviços.
É difícil compreender aonde e como um ‘cluster’, i. e., um polo congregador e gerador de parcerias internacionais, vai buscar tantas certezas nomeadamente na assertiva conclusão que ‘os hospitais que [o país] tem chegam’ e a partir daí concluir que existe uma ‘oferta excedentária’. Parece que existem, nas concepções empresariais, vários países (dentro de Portugal). Um real onde as listas de espera cirúrgicas continuam a obrigar aos SGIC, onde o acesso às consultas de especialidade revela atrasos inconcebíveis, onde não existem médicos de família para o universo dos utentes, onde a realização de exames complementares é diferida até ao inoperável, etc. e aquele outro (País) que está a ser ‘empurrado’ por veleidades do empreendedorismo para intensificar e diversificar a produção com o fito de assegurar a ‘sustentabilidade exportadora’.
Se olharmos para o mercado mundial do ‘tourist/healthcare industry’ verificamos que um dos países líderes desta área ‘turística’ é a India link onde existem condições facilitadoras deste tipo de actividade: instalações hospitalares com updates tecnológicos; staff médico e de pessoal auxiliar com credenciação internacional e comunicando num inglês fluente; capacidade de resposta imediata (sem listas de espera); opções na área de hotelaria excepcionais (quartos particulares, tradutores, equipas de apoio adstritas ao turista/doente “tailor-made services’, etc.). Mas existe uma outra característica que influencia este mercado: custos de tratamentos médicos cerca de 60 a 80 % mais baixos do que os praticados nos EUA e Reino Unido.
Resumindo, este conjunto de condições envolventes relativos à promoção e expansão do ‘turismo médico’ não existem, nem é suposto virem a existir a breve prazo, na rede hospitalar pública nacional. Este ‘esforço’ deve, portanto, ser entendido como alavanca para a melhorar as prestações e a rentabilidade da rede hospitalar privada. O que não sendo per si um facto pernicioso carrega no ventre o habitual estigma das soluções neoliberais. A sua efectivação no sector privado para ‘concorrer’ com os custos de outros ‘players’ do mercado vai determinar (justificar) o esmagamento das retribuições dos profissionais de saúde que aí trabalham. A isto chama-se, numa linguagem vagamente marxista, desvalorização da força trabalho, ‘outros’ – a nova geração empreendedora - chamar-lhe-á um ‘ajustamento necessário’ para ganhar competitividade (nos mercados).
O mais espantoso de toda esta história é o facto de o PS ter embarcado nesta fábula link. ‘Seguramente’ para não perder o comboio!
Na verdade, os hospitais públicos pouco ou nada têm a ver com esta aposta. Não basta invocar os pergaminhos do SNS, nem indecorosamente misturar as partes pública e privada ("Temos histórias de sucesso, uma é o Sistema Nacional de Saúde [SNS], a parte pública e privada" link) para mobilizar e aliciar um serviço público desgastado com sucessivos cortes, amputado por um longo período de não-investimento, logo, totalmente absorvido numa titânica luta pela sobrevivência.
A rede hospitalar pública necessita de ganhar a batalha da universalidade, da equidade e da acessibilidade, e conseguir ter prestações atempadas e de qualidade (deixo a ‘excelência’ para os políticos), antes de se meter numa aventura exportadora vincadamente perturbadora da missão interna (nacional). Até porque neste âmbito poderão existir (para o espaço europeu) conflitos com a directiva europeia sobre cuidados de saúde transnacionais.
Concluindo: a inclusão do sector público nesta iniciativa não passa de um habilidoso estratagema para promover o ‘sistema’ privado e para sentar à mesa do orçamento do Estado (através da AICEP, p. exemplo) a sua rede hospitalar em crescente expansão link, sem causar burburinho social, nem escândalo político.
Do que realmente se trata é colocar o Estado ao serviço de uma ‘nova cruzada’ movida em favor de ‘empresas hospitalares exportadoras’, enquanto diariamente o actual Governo destrói a universalidade e questiona a sustentabilidade financeira do SNS.

E-Pá!

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