Turismo de Saúde
Uma espécie
de ‘delírio da internacionalização’ parece contaminar impiedosamente alguns
sectores da saúde através da descoberta de uma nova via de expansão e
diversificação da oferta turística que parece mobilizar vários operadores
nestas áreas (saúde e turismo), sob a batuta de um recém formado ‘cluster’ link.
Nada a opor a
esta aposta se tivermos em consideração as realidades do País, não
mistificarmos expectativas e tornarmos o ‘jogo’ transparente.
O ‘turismo de
saúde’ não é uma actividade desconhecida, nem inédita, em Portugal. Remonta, no
âmbito interno, aos memoriais tempos da ocupação romana que difundiu o
termalismo. ‘Ir a águas ou a banhos’ foi um importante entretimento de
vilegiatura das classes mais abastadas (burguesia urbana e rural) durante os
séculos XIX e primeira metade do XX, permitindo o convívio social e busca de
alívio para ‘maleitas’ de vária ordem. Tornaram-se famosas muitas das estâncias
termais espalhadas pelo País (Aregos, Cabeço de Vide, Caldas da Rainha,
Caldelas ou Taipas, Chaves, Caldas da Saúde, S. Jorge, S. Pedro do Sul,
Monchique, S. Vicente, etc.). Múltiplos tipos de tratamentos eram aí praticados
desde a hidroterapia, talassoterapia, crenoterapia até a simples hidropinia (o
popular ‘ir a águas’), até às actividades sócio-culturais: tertúlias, saraus e
bailes. Até que a partir da 2ª. metade do século XX a tecnologia hidrotermal
(duches, jacúzis, massagens, banhos, etc.), os ‘health clubs’, aliados à
proliferação de SPA, ‘deslocaram’ as termas do seus recônditos e aprazíveis
nichos geográficos naturais para as climatizadas caves dos ‘estrelados’ hotéis
das grandes cadeias internacionais.
O ‘turismo de
saúde’ existiu, também, pelo menos desde o séc. XVIII (caso do
hospital-sanatório rainha D. Amélia/Funchal) e conheceu um excepcional
crescendo no final de séc. XIX e início do XX, primeiro na Madeira,
estendendo-se depois à Guarda e ao Caramulo, para o tratamento da tuberculose,
na ausência de medidas terapêuticas eficazes. Tratou-se em termos económicos de
uma ‘resposta concorrencial’ aos sanatórios da Suíça e dos Pirenéus, na
exploração de virtudes e especificidades climatológicas. A descoberta da vacina
(BCG), que começou a ser administrada em seres humanos em 1921, o aparecimento
da estreptomicina (descoberta em 1943) veio determinar o desmantelamento deste
mercado de ‘turismo de saúde’.
Estas
actividades imbuídas de algum espírito empírico, artesanal e muitas de âmbito
familiar foram inexoravelmente destronadas pelos avanços da tecnologia (farmacêutica,
hidrológica, balneoterápica, massoterápica, etc.), inovações que não fomos
capazes de integrar nas instituições e empresas até aí existentes.
Neste
momento, estamos face a um ‘novo’ projecto de ‘turismo de saúde’ virado para a
exportação e encaminhado para um ´programado’ sucesso empresarial.link.
O que seria
desejável é que este projecto e/ou esta estratégia não assentasse num modelo
pouco explícito (em termos de oferta), ou em âmbitos nebulosos (no pantanoso
terreno da qualidade) e, recorrentemente, embrulhado em indefinições
semânticas.
Em primeiro
lugar convinha definir (balizar) o que se entende por ‘turismo médico’, por
‘turismo de saúde’, ou, a mais recente designação adoptada, ‘turismo de
bem-estar’ (benefit tourism).
Deixando de
lado a agregadora definição de saúde da OMS que engloba uma concepção vasta e
inclusiva assente no ‘bem-estar’, quando nos atemos ao campo de actuação da
‘indústria turística’, há diferenças substanciais entre as possíveis vertentes
e, como é óbvio, diferentes tipos de ‘oportunidades’.
Se nos
fixarmos no ‘turismo médico’ verificamos que esta tem a ver com situações
específicas. Primeiro, a ‘não-cobertura interna’ para as intervenções desejadas
(≠ de desejáveis) seja por não estarem cobertas pelos planos de seguros de
saúde ou fora das comparticipações dos sistemas públicos (nacionais ou
regionais). Em segundo lugar, existe um ‘ business leitmotiv ’ que é o custo
das intervenções a efectuar, i. e., o fluxo de procura move-se no sentido dos
baixos custos (‘low-cost’). Um terceiro vector, diz respeito à referenciação profissional
e tecnológica dos prestadores onde ocupa um lugar central a qualidade e os
resultados dos serviços a ‘exportar’. Finalmente, quando se trata de
intervenções de âmbito cirúrgico, as performances técnicas exigem ‘saídas
rápidas’, onde emerge a questão do ‘follow-up’, por vezes difícil de conciliar
com o carácter sazonal e fugaz que caracterizam as deslocações ‘turísticas’ e a
existência de legislação permissiva em relação aos erros e negligências dos
actos médicos (que retira segurança ao turista/doente).
A expansão
deste no mercado exportador está, portanto, associada a questões complexas de
modelo e estruturais. Algumas delas brigam com a ‘cultura médica’ tradicional
existente no nosso País e a capacidade de transpor (adaptar) respostas
dominadas pela universalidade (concepção do sector público/SNS) para
excepcionalidades que informam as ‘respostas turísticas’, enquanto actividade
exportadora.
No meio deste
‘frenesim’ foram proferidas afirmações que fazem soar campainhas de alarme de
que é exemplo paradigmático a seguinte tirada: “O diretor executivo do Health
Cluster Portugal (HCP), Joaquim Cunha, disse hoje à agência Lusa que, "de
facto, há um potencial e não precisa de investimento, ou seja, os hospitais que
[o país] tem chegam e neste momento, quer da parte pública quer da privada, há
uma oferta excedentária". link.
Desconhecemos
se o director do HCP foi buscar esta certeza (oferta hospitalar excedentária)
ao ‘relatório Mendes Ribeiro’ link ou se trata de uma inabalável crença. No que diz respeito à
‘parte pública’ nada está definido em questões de ‘oferta’. Sabemos que para
além de um constante questionar da sustentabilidade financeira da rede
hospitalar pública, no que diz respeito às questões de referenciação e
resposta, tudo está em suspenso ou subtilmente diferido para 2016 link.
A situação da
rede hospitalar nacional revela – nos últimos anos – cada vez mais
incongruências, insuficiências, incapacidades que, ao contrário do que o HCP
julga, condicionam determinantemente as respostas e afastam-se de uma cabal
satisfação das necessidades internas. Entre eles seria de salientar a brutal
queda no investimento em inovação técnica e na formação e as inevitáveis
consequências quando se levantam questões de competitividade (venda de serviços
ao exterior). Na verdade, só no plano da abstracção e do delírio se pode
considerar que existe no terreno uma ‘health care industry’ pronta para
funcionar concorrencialmente num mercado globalizado, com uma produção
abrangente: capaz de satisfazer a procura interna e, ainda, de exportar
serviços.
É difícil
compreender aonde e como um ‘cluster’, i. e., um polo congregador e gerador de
parcerias internacionais, vai buscar tantas certezas nomeadamente na assertiva
conclusão que ‘os hospitais que [o país] tem chegam’ e a partir daí concluir
que existe uma ‘oferta excedentária’. Parece que existem, nas concepções
empresariais, vários países (dentro de Portugal). Um real onde as listas de espera
cirúrgicas continuam a obrigar aos SGIC, onde o acesso às consultas de
especialidade revela atrasos inconcebíveis, onde não existem médicos de família
para o universo dos utentes, onde a realização de exames complementares é
diferida até ao inoperável, etc. e aquele outro (País) que está a ser
‘empurrado’ por veleidades do empreendedorismo para intensificar e diversificar
a produção com o fito de assegurar a ‘sustentabilidade exportadora’.
Se olharmos
para o mercado mundial do ‘tourist/healthcare industry’ verificamos que um dos
países líderes desta área ‘turística’ é a India link
onde existem condições facilitadoras deste tipo de actividade: instalações
hospitalares com updates tecnológicos; staff médico e de pessoal auxiliar com
credenciação internacional e comunicando num inglês fluente; capacidade de
resposta imediata (sem listas de espera); opções na área de hotelaria
excepcionais (quartos particulares, tradutores, equipas de apoio adstritas ao
turista/doente “tailor-made services’, etc.). Mas existe uma outra
característica que influencia este mercado: custos de tratamentos médicos cerca
de 60 a 80 % mais baixos do que os praticados nos EUA e Reino Unido.
Resumindo,
este conjunto de condições envolventes relativos à promoção e expansão do
‘turismo médico’ não existem, nem é suposto virem a existir a breve prazo, na
rede hospitalar pública nacional. Este ‘esforço’ deve, portanto, ser entendido
como alavanca para a melhorar as prestações e a rentabilidade da rede
hospitalar privada. O que não sendo per si um facto pernicioso carrega no
ventre o habitual estigma das soluções neoliberais. A sua efectivação no sector
privado para ‘concorrer’ com os custos de outros ‘players’ do mercado vai
determinar (justificar) o esmagamento das retribuições dos profissionais de
saúde que aí trabalham. A isto chama-se, numa linguagem vagamente marxista,
desvalorização da força trabalho, ‘outros’ – a nova geração empreendedora -
chamar-lhe-á um ‘ajustamento necessário’ para ganhar competitividade (nos
mercados).
O mais
espantoso de toda esta história é o facto de o PS ter embarcado nesta fábula link.
‘Seguramente’ para não perder o comboio!
Na verdade,
os hospitais públicos pouco ou nada têm a ver com esta aposta. Não basta
invocar os pergaminhos do SNS, nem indecorosamente misturar as partes pública e
privada ("Temos histórias de sucesso, uma é o Sistema Nacional de Saúde
[SNS], a parte pública e privada" link)
para mobilizar e aliciar um serviço público desgastado com sucessivos cortes,
amputado por um longo período de não-investimento, logo, totalmente absorvido
numa titânica luta pela sobrevivência.
A rede
hospitalar pública necessita de ganhar a batalha da universalidade, da equidade
e da acessibilidade, e conseguir ter prestações atempadas e de qualidade (deixo
a ‘excelência’ para os políticos), antes de se meter numa aventura exportadora
vincadamente perturbadora da missão interna (nacional). Até porque neste âmbito
poderão existir (para o espaço europeu) conflitos com a directiva europeia
sobre cuidados de saúde transnacionais.
Concluindo: a
inclusão do sector público nesta iniciativa não passa de um habilidoso
estratagema para promover o ‘sistema’ privado e para sentar à mesa do orçamento
do Estado (através da AICEP, p. exemplo) a sua rede hospitalar em crescente
expansão link,
sem causar burburinho social, nem escândalo político.
Do que
realmente se trata é colocar o Estado ao serviço de uma ‘nova cruzada’ movida
em favor de ‘empresas hospitalares exportadoras’, enquanto diariamente o actual
Governo destrói a universalidade e questiona a sustentabilidade financeira do
SNS.
E-Pá!
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