O 35º aniversário
Neste jogo de desencontros todos perdemos. Assim se comemora o 35º aniversário do SNS.
De forma larvar começam a
aparecer na Saúde as consequências do ajuste orçamental violento a que estamos
submetidos desde há três anos e meio. Ainda sem resultados visíveis nos grandes
agregados das estatísticas de mortalidade. Nem sequer nas de morbilidade ou de
doença, essas mais difíceis de colher. Mas no desempenho dos serviços, ou seja,
no funcionamento do SNS, que o Governo proclama defender até à eternidade.
Os mais
fundamentalistas adiantam ter sido este Governo a salvá-lo da sua falência,
dita técnica. Já conhecíamos o argumento desde os anos oitenta, quando
Mrs.Thatcher, soltou o famoso brado “o SNS não está em risco, está a salvo,
connosco” (the NHS is safe
with us). Depois, foi o que se viu.
Sempre morreram pessoas nas
urgências, antes, depois e durante a assistência. Por tal razão me bati para
separar verdadeiros serviços de urgência de meras salas onde médico, enfermeira
e administrativo faziam de contas que garantiam um atendimento de qualidade
impossível. O primeiro requisito são recursos humanos de assistência directa,
sobretudo médicos e enfermeiros. Quando estes escasseiam ou são comprimidos, ou
mesmo suprimidos, a deriva de qualidade torna-se perigosa. Em situações de
maior procura, normalmente no inverno e no pico do verão, por ausência de
alternativa, muitos doentes frágeis afluem onde pensam poder ser rapidamente
assistidos. O resultado traduz-se em esperas inomináveis, mesmo depois de uma
triagem perfeita que separe a procura por graus de risco.
Segundo noticiam os jornais,
sem contradita do ministério, teriam ocorrido mortes após várias horas de
espera para observação e tratamento, em São José, no Hospital de Setúbal, no de
Santa Maria da Feira e no de Peniche. Locais onde sempre houve boas condições
de assistência urgente integral (com a eventual excepção de Peniche, por razões
que ocuparam os jornais nos finais de 2007). O que terá feito a diferença,
agora? Que factor causal pode ter influenciado estes desfechos? Quando os
familiares referem a não assistência, não é suposto conhecerem as escalas de
médicos e enfermeiros. Mas quando, em algumas grandes urgências, apenas teria
sido possível escalar 5 ou 6 médicos, aí a preocupação aumenta. Passou-se do
“oitenta para o oito”. Bem recordo o abuso de nomeações de escalas nos maiores
hospitais do País, colocando entre 90 e 105 médicos, em serviço de urgência de
porta e interna. Razões remuneratórias e não clínicas. Vencimentos baixos para
a qualidade da função, os gestores abriam o recurso a horas extra na urgência
para compensar e manter motivado o profissional. Claro que entre a motivação
eficiente e o abuso do laxismo a fronteira seria sempre difícil. Tudo isso
custava muito dinheiro ao País. Com a Troika vieram medidas austeritárias, mas
não reformadoras. Em vez de se reorganizar o trabalho e a retribuição de
médicos e enfermeiros em termos decentes, para o que havia espaço político, o
Governo preferiu um quick
winner: cortar nas escalas, reduzir vencimentos e limitar o valor a
pagar por horas extra. Em vez de se interessarem pelas urgências, os
profissionais passaram a delas fugir. A solução fácil, mais uma vez, foi
recrutar médicos sem ligação ao hospital, de empresas constituídas para
fornecer esta mão-de-obra qualificada. Como os encargos rapidamente
espiralavam, o ministério anterior fixou um tecto financeiro para pagar a tais
profissionais. Chegada a crise, sem outro recurso que as leis do mercado
protegido que criou, não restou ao Estado outra solução que não fosse entrar no
jogo escatológico de subir o tecto. Lá se foi, de vez, a aprendizagem das
urgências para médicos da casa, as reuniões de equipa para encaminhamento de
casos no final do turno e o acompanhamento personalizado, intra-muros, por quem
havia assistido em primeira mão.
Entrámos, assim, em círculo
vicioso: não podem deixar de ser contratados médicos ao exterior para acolher
uma procura exigente e crescente, agravada por razões sazonais. Não se pode
deter essa procura, a montante, por se ter parado na criação de unidades de
saúde familiares (USF) e de cuidados continuados (CCI), devido a escassez de
recursos para pequenas obras, equipamento e co-financiamentos a instituições
promotoras. Qualquer dessas alternativas é mais eficiente no curto e no médio
prazo que a porta aberta a tudo e a todos, apesar dos 20 euros de taxa
moderadora cobrada, até judicialmente, aos não isentos, com rendimento superior
a 628 euros. Não admira que uns e outros, doentes e pessoal, fujam para o
privado. Os doentes, que a si se considerem sem gravidade, preferem gastar os
20 euros no conforto da consulta rápida de um hospital privado, onde
provavelmente serão assistidos por um médico de família que bem gostaria de
integrar uma USF, mas não o pode fazer por o crescimento destas estar em
hibernação. Médicos com mais de 55 anos preferem aguardar a reforma, ao
desconforto de uma noite agitada num grande hospital. Os mais novos são
atraídos por hospitais privados, onde já existem equipas de qualidade, reuniões
clínicas e sobretudo retribuição decente. Os enfermeiros emigrarão para a
Bélgica ou para o Reino Unido, onde a sua excelente formação é devidamente
recompensada. Neste jogo de desencontros todos perdemos, sobretudo os que não
têm os 20 euros. Assim se comemora o 35º aniversário do SNS.
António Correia de Campos, JP 12.01.15 link
Etiquetas: CC, Crise e politica de saúde
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