A reinar connosco
Desde há muito que, mesmo num país onde o improviso é
apreciado, os governos apresentam programas, elaboram planos e cingem-se a
orçamentos. Com recursos finitos e infindas necessidades, os bons governos
fazem escolhas, sacrificam umas acções a outras para melhor servirem o
interesse público. Neste segmento final da sua vida o nosso actual Governo, com
eleições pela frente, oculta o seu programa, se é que o tem, promete coisas
impossíveis, fumega pelo nariz, à espera de conseguir criar a nuvem de fumo que
o esconda dos seus ásperos julgadores.
No Inverno passado, rebentou uma crise nas urgências. Bem
tentou o Governo disfarçar com o “frio extremo” a incapacidade de atender e
escoar doentes nos hospitais. Só então deve ter percebido que tudo tem causas e
consequências. A acorrência inusitada às urgências não era um fenómeno da
natureza, mas a natural consequência de graves restrições que impôs na saúde,
não substituindo pessoal, desmantelando equipas, encerrando camas, congelando
novas unidades de saúde familiar (USF) e arrastando os pés na criação de
unidades de cuidados continuados. O resultado foi catastrófico: sem novas USF,
o aumento natural da morbilidade embateu na barreira dura de urgências
desmunidas de gente experiente, forradas de tarefeiros, pessoal desorientado
correndo de um lado para o outro sem poder acorrer a tudo. Serviços
atravancados de macas e camas, escoamento impossibilitado por falta de leitos,
e de cuidados continuados. Casos ligeiros amontoados com casos graves, esperas
infindáveis, doentes com fome, gemendo de dores, reclamando um olhar, um pouco
de água, uma atenção. Foi preciso que surgisse uma câmara indiscreta para que o
País conhecesse a dimensão do inferno.
Com dez meses ainda pela frente esperava-se que o Governo
acordasse. Sabia existirem especialistas recém-graduados, instalações
disponíveis, vontades e propostas de candidaturas de médicos de família para
criação de USF. Que misterioso embargo o impediu de, em tempo útil, preparar
planos de contingência para o que já vimos em anos anteriores, uma eventual
onda de calor no verão e outro potencial episódio dantesco no Inverno? Passado
o pico da crise, depois de Fevereiro, o Governo relaxou.
Até que alguém revelou que no ano em curso apenas uma USF
havia sido criada, confirmando a arrefecimento da execução de uma medida que
todos, até a Troika, haviam recomendado. Chegou a Oposição com seu programa de
governo. Propõe a retoma da política de criação de unidades familiares, cem ao
longo de quatro anos. Programa modesto, dando médico de família a pouco mais de
quinhentos mil cidadãos hoje sem cobertura, implicando mobilizar quase 800
médicos, dos quais apenas um quarto seriam novos diplomados. Investimento
relativamente pequeno, em parte elegível para apoio comunitário. Medida pautada
pelo rigor orçamental, sem falsas promessas, exequível e ao alcance dos nossos
meios, desde que cuidadamente preparada. A proposta da oposição é conhecida ao
fim da manhã.
De tarde, no debate parlamentar era urgente responder.
Contas passadas nas costas de um envelope, o Primeiro-Ministro, categórico,
ajudado pela sua magnífica colocação de voz, promete até final do ano esgotar a
lista dos 1,2 milhões de Portugueses alegadamente sem médico de família, para
tal reintegrando no activo 400 médicos recentemente reformados.
Vamos a contas: admitamos que o Governo mobiliza mesmo esse
número de médicos, esqueçamos por agora os enfermeiros, o pessoal
administrativo, as pequenas obras e o mobiliário e outro equipamento necessário
e usemos uma média de três consultas por habitante/ano. Cada médico reformado
teria que realizar 9 mil consultas num ano, novecentas por mês, descontando
férias e feriados, 40 por dia. Já imaginaram? Num dia de seis horas laborais,
com intervalo de dois minutos entre consulta, sem perdas de tempo nem idas ao
WC, cada médico poderia atribuir a cada doente apenas 7 minutos. Tendo que
cumprimentar o doente, registar os dados da consulta no computador, emitir a
prescrição, talvez restasse 1 minuto para a anamnese. Teria que dispensar a
observação. Uma verdadeira epopeia que colocaria a medicina nacional nos
píncaros da competitividade mundial. Claro que tudo isto é a brincar. Eu brinco
com o leitor, como o Governo brinca com o Povo a anunciar que até final do ano
esgotará a lista de utentes sem médico de família, como brinca com os 400
profissionais que pensa atrair para o activo com apenas um terço do ordenado.
Um governo brincalhão.
Correia de Campos, JP 25.05.15
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