sexta-feira, março 25

Luís Campos, entrevista à GH

...GH: Reúne uma longa experiência na direcção de serviços e departamentos hospitalares. Quais os principais obstáculos que identifica na governação hospitalar na actualidade?
LC: Para quem tem que gerir equipas e hospitais os tempos não têm sido fáceis. Em primeiro lugar houve uma redução substancial das remunerações dos profissionais de saúde: os médicos foram os funcionários públicos mais penalizados nesta crise, tendo perdido quase 700 euros de rendimento mensal nos últimos quatro anos e os enfermeiros quase 200 euros. Em contraste os juízes viram o seu rendimento mensal subir quase 1000 euros. Quando a saúde é reconhecidamente o sector da administração pública que funciona melhor e os tribunais um dos que funciona pior, imagine-se o impacto desta iniquidade na motivação das pessoas e a nossa dificuldade em motivar as nossas equipas. Depois assistiu-se a uma ditadura cega do ministério das finanças em relação aos hospitais. Os hospitais têm estado tolhidos na sua capacidade de gestão e as restrições aplicaram-se da mesma forma aos que tinham bons resultados e aos que tinham maus resultados. Acabaram por ser os hospitais que eram mais eficientes os que foram mais penalizados. A crise das urgências é, em parte, resultante desta perda de flexibilidade dos hospitais pelas restrições às contratações. Há que autonomizar a gestão e naturalmente responsabilizar mais, o que significa que a má gestão tem que ter consequências e a boa deve ser incentivada. Uma das áreas mais penalizantes foi a perda da capacidade de escolha dos profissionais por parte dos hospitais, o que impossibilita a formação de equipas coerentes e funcionais. Este facto, a par da dificuldade em concorrer com os grupos privados de saúde e com os hospitais em PPP, tem impossibilitado a renovação dos serviços com as pessoas que nos fazem falta. Em relação à minha especialidade, Medicina Interna, a obrigatoriedade que muitos hospitais introduziram de os internistas admitidos terem que ficar um ou mais anos nas equipas fixas de urgência está a ser fatal para muitos serviços de Medicina. O reforço da gestão intermédia é uma mudança desejável, mas isso já faz parte das prioridades enunciadas por esta equipa ministerial. No entanto, para que isto seja real esta gestão intermédia não pode ser ultrapassada e desautorizada pelas administrações, tal como sucede em alguns hospitais, em que esta gestão intermédia está instituída.
GH: Como vê o futuro dos cuidados hospitalares no quadro do sistema nacional de saúde ?
LC: É cada vez mais difícil predizer o futuro, porque ele acontece cada vez mais rapidamente e porque é cada vez mais incerto. A possibilidade de epidemias à escala global, a emergência de estirpes bacterianas resistentes a todos antibióticos, as catástrofes decorrentes das alterações climáticas, os fenómenos migratórios, novas crises económicas, são possibilidades próximas que podem inverter subitamente as nossas prioridades. pelo que a atitude mais correta é a criação de cenários. A perspetiva que apresento é baseada num cenário evolutivo que o Institute for Alternative Futures designou de “zona de expectativa convencional”.
Em primeiro lugar: de que doentes têm os hospitais que cuidar? De doentes cada vez mais idosos, com mais doenças crónicas, com multimorbilidades, com mais incapacidade, mais problemas sociais, que vêm morrer aos hospitais, mas também doentes cada vez mais informados, mais exigentes e com expectativas que excedem a real capacidade de resposta da Medicina, expectativas formatadas pelas séries de televisão passadas nos hospitais. Mas a procura de cuidados também é determinada pela oferta. E como têm evoluído os cuidados hospitalares? O crescimento vertiginoso do conhecimento médico e a evidência da relação entre volume e qualidade têm induzido uma especialização crescente e a fragmentação inexorável das especialidades, transformando o paradigma do exercício da Medicina numa actividade essencialmente baseada em equipas. A resposta adaptativa da estrutura hospitalar tem sido o aumento da escala dos hospitais e a sua concentração. Em Portugal isso tem acontecido de forma acelerada: em 2008 tínhamos 73 hospitais de agudos e actualmente são 40, número que me parece perto do ideal. Esta evolução foi determinada pela reforma das urgências.
E como se diferenciam estes hospitais em termos de capacidade de resposta? A reforma das urgências definiu os hospitais de agudos e separou-os em dois níveis: os que tinham urgência polivalente os que tinham urgência médico-cirúrgica, mas isso não substituiu a necessidade de uma carta hospitalar, enquanto documento estruturante e de referência do Serviço Nacional de Saúde. Eu próprio reivindiquei durante muitos anos a sua publicação, tendo mesmo sido coautor de uma proposta, a pedido da DGS em 2008. Finalmente a portaria 82/2014 definiu uma espécie de carta hospitalar, mas a sua incoerência levou a uma contestação generalizada que logo conduziu à sua renegação pelo próprio ministério. A redefinição da carta hospitalar terá necessariamente que acontecer a breve prazo. A reforma das urgências acelerou também a criação de centros hospitalares. Não está bem avaliado o impacto da criação destes centros. No entanto vejo com preocupação o modelo que alguns centros hospitalares adoptaram, que é dispersar os serviços por vários hospitais. Esta opção cria dificuldades na comunicação e no aproveitamento de sinergias, colocando barreiras geográficas para o acesso dos doentes a cuidados hospitalares. Penso que seria preferível centralizar o internamento e descentralizar o ambulatório e, quando houvesse necessidade de manter o internamento, que isto acontecesse apenas nas especialidades básicas. A criação de grandes clínicas ambulatórias com cuidados integrados tem sido uma das estratégias de sucesso dos grupos privados.
Ainda em relação à rede hospitalar, tem sido defendido que a abertura de mais camas de cuidados de longo termo permite o encerramento de camas hospitalares, o que justificou o encerramento de mais de 400 camas nos últimos três anos. Na realidade a ausência dessas camas de longo termo é o nosso maior desequilíbrio estrutural em termos de capacidade de internamento, mas para além disso temos também um défice de camas de agudos em relação à média dos países europeus e esta necessidade vai aumentar, particularmente em relação a camas médicas, previsão que é consensual nos vários sistemas de saúde. Este défice acontece apesar do crescimento da capacidade de internamento que tem estado a acontecer no sector privado e que, e ao que tudo indica, se irá acentuar.
A invasão dos hospitais pelos doentes idosos e com multimorbilidades, aquilo que os anglo-saxónicos chamam o "silver tsunami", é um problema prioritário para todos os sistemas de saúde nos países ocidentais. Na Medicare os cerca de 14% dos doentes com seis ou mais condições crónicas representam quase 50% das despesas. Assim, quanto mais caminharmos na direcção da hiperespecialização mais precisamos de uma especialidade generalista, dentro do hospital essa especialidade é a Medicina Interna. Não só nos serviços de Medicina mas no apoio a todos os outros serviços hospitalares, particularmente os cirúrgicos. A importância da Medicina Interna fica bem demonstrada nestas alturas de inverno em que os internistas são sujeitos a uma sobrecarga extrema, tratando destes doentes nas urgências, nos serviços de Medicina e em muitas outras camas espalhadas por todo o hospital, e isto sem que haja qualquer remuneração extra como acontece com a produção cirúrgica adicional, porque é esta que traz financiamento para o hospital. A necessidade desta especialidade generalista nos hospitais tem sido traduzida no crescimento exponencial dos hospitalistas nos EUA ou da Acute Medicine, no Reino Unido.
Estes doentes, que são doentes complexos e são os grandes utilizadores das nossas enfermarias e das nossas consultas, beneficiam da nossa experiência, mas não podem ser abordados através de programas de gestão de doença crónica centrados em doenças mas através de uma resposta dirigida às necessidades específicas de cada um. Esta resposta deve estar centrada em equipas multidisciplinares lideradas por internistas. Para que estes programas apareçam é preciso que o financiamento não esteja só centrado na produção hospitalar mas também nestes programas de responsabilidade partilhada entre diferentes níveis de cuidados.
No internamento a criação de departamentos geridos pela Medicina Interna, que articulasse a intervenção das outras especialidades, tal como está implementado no Hospital Beatriz Ângelo e no de Matosinhos, seria, quanto a mim, a forma mais eficaz de dar resposta a estes doentes. O nosso país teve a clarividência de, ao longo dos anos, decidir o número anual de vagas nas especialidades em função das necessidades das pessoas e não em função das preferências dos licenciados em Medicina, como acontece em muitos países europeus. Desta forma conseguiu manter o melhor ratio europeu entre as especialidades generalistas e as outras, estando em boas condições para poder ser um case study neste campo.
Uma palavra para os centros de referência em fase de implementação e que emanam de uma directiva europeia. Sendo, à partida, uma boa ideia, é fundamental evitar o risco de poderem aumentar a iniquidade no acesso a cuidados de qualidade, oferecendo excelência a alguns doentes e deteriorando a qualidade dos cuidados aos restantes, por falta de acesso. Finalmente não prevejo que iremos passar de tempos de graves restrições para tempos de fartura, pelo que a necessidade de identificar ineficiências e aumentar a produtividade vai continuar a ser um desafio para gestores e profissionais.
GH: O Hospital da próxima década como é que vai ser?
LC: Não lhe vou responder como vai ser mas como eu gostaria que fosse: gostaria que o hospital do futuro prestasse uma assistência clínica que se distinguisse pela excelência na sua qualidade, que os profissionais trabalhassem verdadeiramente em equipas e as equipas comunicassem de forma eficaz, que os doentes, para além de serem bem tratados se sentissem bem tratados, com humanidade e no respeito escrupuloso pelos seus direitos, que a sua segurança fosse uma prioridade para todos, que houvesse uma preocupação por todas as questões do ambiente que favorecem a recuperação dos doentes, que o modelo organizacional fosse informado pela melhor evidência e que o interesse dos doentes fosse o critério de decisão para todas as mudanças, que o hospital fosse um espaço onde os profissionais se sentissem felizes, realizados, tivessem oportunidades de desenvolvimento pessoal, condições remuneratórias condignas e reconhecimento pelo mérito, que o sistema de informação fosse fácil de usar e permitisse acesso à informação dos doentes em todos os locais e a toda hora, assim como acesso a bases de dados do conhecimento onde e sempre que os profissionais precisassem, que as inovações tecnológicas fossem introduzidas de forma atempada, que o hospital fosse também uma escola e a investigação uma prioridade, havendo a possibilidade de juntar a investigação básica e clínica, que o hospital saísse das suas fronteiras e levasse a sua expertise aos centos de saúde e a casa dos doentes e cooperasse com outras estruturas para garantir cuidados integrados a cada doente de acordo com as suas necessidades. É isto que eu gostava que fosse o hospital da próxima década.
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