quarta-feira, agosto 21

Abiraterona

Onde de novo se fala no caso da abiraterona e de uma abençoada fonte do MS
A recusa dos IPO de não autorizar a prescrição de abiraterona para tratamento de doentes com cancro da próstata suscitou reacções justificativas do Ministério da Saúde (MS) e dos presidentes dos IPO de Lisboa e Porto, baseadas em dois aspectos centrais -- eficácia/efectividade e segurança, e custo -- que merecem ser examinados com algum pormenor.
Numa nota à Imprensa divulgada no passado dia 05, o MS afirma que «a definição de um formulário e a decisão de usar determinados medicamentos é a forma mais eficaz de garantir a qualidade dos tratamentos com medicamentos e assegurar que os doentes não sejam expostos a riscos desnecessários e superiores a qualquer benefício de que possam vir a usufruir. Não é apenas, nem sobretudo, um mecanismo de contenção de custos, como se quer fazer crer»; e que «a criação do Formulário Nacional do Medicamento, que já arrancou em algumas áreas (sida, esclerose múltipla e cancro da próstata), baseia-se na melhor evidência científica verificada até ao momento».
Por seu turno, o presidente do Conselho de Administração do IPO de Lisboa, Francisco Ramos, em declarações à Lusa prestadas no mesmo dia, afirmou que os medicamentos em causa (oncológicos) «são muito caros e com benefícios muito reduzidos»; e o presidente do IPO do Porto, Laranja Pontes, também a 05 de Agosto, afirmava à TVI que a abiraterona «é um medicamento novo, mas não inovador, tem benefícios marginais», e que a sua não-inclusão no formulário «não tem nada a ver com custos, temos medicamentos muito mais caros».
Tendo em atenção estas posições, será útil revisitar o que a EMA e o NICE concluíram acerca da abiraterona. E perdoar-me-ão que, antes do mais, recorde a missão e a função de cada uma destas entidades. A missão da EMA consiste em «promover a excelência científica na avaliação e supervisão de medicamentos, para benefício da Saúde Pública e animal»; e a sua função, como «agência da União Europeia responsável pela coordenação dos recursos científicos existentes postos à sua disposição pelos Estados-membros para avaliação, supervisão e farmacovigilância de produtos medicinais», consiste «em fornecer aos Estados-membros e às instituições da EU o melhor aconselhamento científico possível sobre todas as questões relacionadas com a avaliação da qualidade, segurança e eficácia de produtos medicinais para uso humano ou veterinário» link.
Quanto ao NICE, é sua missão «apoiar os profissionais de saúde para lhes assegurar que os cuidados que prestam são da melhor qualidade possível e oferecem a melhor relação benefício-custo», através de «orientações independentes, autorizadas e baseadas na evidência sobre os meios mais efectivos de prevenir, diagnosticar e tratar as doenças, reduzindo desigualdades e variações» link.
EMA: Em Setembro de 2011, a EMA autorizou a entrada no mercado da abiraterona (Zytiga®) «indicado, com prednisona ou prednisolona, para o tratamento do cancro da próstata metástatico resistente à castração (CPMRC) em homens adultos, cuja doença progrediu após um regime de quimioterapia baseado em docetaxel», com base no parecer positivo do CHMP, que, «tendo em conta os dados de qualidade, segurança e eficácia apresentados, considerou existir uma relação benefício-risco favorável» no medicamento, «capaz de melhorar a sobrevivência e atrasar a progressão da doença». Os seus efeitos secundários mais comuns são «edema periférico, hipocaliemia, hipertensão e infecção do tracto urinário».
Entretanto, a Janssen propôs a extensão da indicação aprovada da abiraterona para incluir o «tratamento do cancro da próstata metastático resistente à castração em homens adultos assintomáticos ou com sintomas ligeiros, após insucesso de terapêutica de privação androgénica» (pré-docetaxel), e, em apoio desta solicitação, apresentou novos dados de estudos de farmacologia, farmacocinética e toxicologia, e um estudo de avaliação de risco ambiental (seria apresentado um novo estudo, no decurso da avaliação, a pedido do CHMP).
A EMA lembrou, a propósito, que «o prognóstico dos doentes com CPMRC continua a ser pobre (sobrevivência média de cerca de 1-2 anos).Depois de os doentes se tornarem resistentes à castração e desde que permaneçam assintomáticos ou tenham sintomas ligeiros, razão pela qual a quimioterapia não está ainda indicada, podem ser utilizadas diferentes abordagens hormonais, mas, globalmente, não existe nem um consenso claro, nem demonstração clara de eficácia em termos de sobrevivência dos tratamentos disponíveis. Estes doentes que não tem necessidade imediata de quimioterapia podem beneficiar de terapêuticas alternativas. Os dados do estudo COU-AA-302 demonstram vantagens significativas e clinicamente relevantes para este grupo de doentes».
Em 15 de Setembro de 2012, o CHMP adoptou a nova indicação da abiraterona proposta pela Janssen, e uma nova contra-indicação: insuficiência hepática grave, classe Child-Pugh A link.
NICE: Em Fevereiro de 2012, Sir Andrew Dillon, director do NICE, o organismo britânico reconhecido pela sua não-complacência com a Indústria Farmacêutica (e também por ser acusado de colocar as libras à frente do bem-estar dos doentes), dizia:
«A abiraterona é um fármaco que pode prolongar a vida por mais de três meses, em comparação com placebo. Para os doentes, um dos principais benefícios deste medicamento é o facto de poder ser administrado por via oral, em casa. Lamentamos, por isso, não poder recomendar o seu uso no NHS. É um medicamento caro, e a comissão consultiva independente que tomou esta decisão considerou que ele não oferecia benefício suficiente aos doentes para justificar o preço pedido ao NHS, mesmo com o desconto que o fabricante propôs». A comissão também concluiu que o tratamento não satisfazia os critérios do NICE para medicamentos destinados a pessoas em fim de vida, «pois a população para a qual está aprovado não pode ser considerada pequena» link.
Todavia, em Maio do mesmo ano, o NICE reexaminou a questão e emitiu uma nova orientação, segundo a qual «a abiraterona, em combinação com prednisona ou prednisolona, está recomendada como uma opção para o tratamento do CPMRC em adultos, apenas se a doença tiver progredido durante ou após um regime de quimioterapia contendo docetaxel; e se o fabricante fornecer a abiraterona com o desconto acordado no esquema de acesso ao fármaco pelo doente». A comissão consultiva independente concluiu então que «a evidência disponível demonstrou que a abiraterona era um tratamento de segunda linha clinicamente efectivo para o CPMRC». Perdoar-me-ão mais uma vez recordar que, de acordo com o National Center for Biotechnology Information, dos EUA, se a eficácia é a medida em que uma intervenção faz mais bem do que mal em circunstâncias ideais, a efectividade é a medida em que uma intervenção faz mais bem do que mal em circunstâncias da prática clínica diária (Definições do EU High Level Pharmaceutical Forum, Outubro de 2008, link.
A mesma comissão concluiu que «a abiraterona oferece uma alteração qualitativa no tratamento, porque é de toma oral em casa e está associada a poucas reacções adversas». Por outro lado, reconheceu que «a abiraterona preencheu os critérios de tratamento de fim de vida e de prolongamento da vida» Os peritos representantes dos doentes informaram a comissão de que «os mais importantes benefícios da abiraterona eram o prolongamento da vida e a melhoria da qualidade de vida, incluindo menos dor e melhor saúde mental e física»; e de que «as reacções adversas ao tratamento com abiraterona eram toleráveis e comparáveis às associadas ao tratamento hormonal».
A comissão registou que «a abiraterona pode causar hipertensão, hipocaliemia e retenção de fluidos, em consequência de um efeito mineralocorticóide aumentado», e que «as reacções adversas eram geralmente tratáveis e reversíveis», pelo que concluiu que «a abiraterona é geralmente segura, e qualquer reacção adversa associada é tolerável».
O fabricante apresentou um modelo económico comparando três tratamentos: abiraterona mais prednisolona, prednisolona em monoterapia e mitoxantrona mais prednisolona, e um modelo de decisão baseado na sobrevivência, com três estados de saúde -- pré-progressão, pós-progressão e morte --, utilizando um horizonte de 10 anos de sobrevida, e a comissão «concluiu que o modelo satisfazia de perto o caso de referência do NICE para a análise económica».
Tudo isto considerado, a comissão «reconheceu que a abiraterona oferece benefícios na qualidade de vida relacionada com a saúde, para além dos demonstrados no cálculo dos QALY a doentes que recebem mitoxantrona, e que o ratio de custo-efectividade incremental (RCEI) diminuiria, se estes benefícios fossem tomados em conta. O benefício relacionado com a via de administração oral da abiraterona não foi detectado na análise, porque o modelo aplicou o mesmo benefício de utilidade à abiraterona e à mitoxantrona». Tendo em conta estes factores, a comissão nota que, embora o RCEI (ou seja, o ratio entre a diferença nos custos dividida pela diferença nos efeitos) mais plausível «será provavelmente superior ao cálculo do fabricante, 46 800 libras por QALY ganho, para o subgrupo de doentes com quimioterapia prévia, será provavelmente inferior a 50 000 libras» link.
Guidelines da NCCN
As guidelines da National Comprehensive Cancer Network (NCCN), uma rede de 23 dos mais importantes centros oncológicos do Mundo, incluem, entre as opções terapêuticas adicionais após insucesso do docetaxel, a abiraterona, com categoria de evidência 1. O fármaco, associado a prednisona, «demonstrou benefício clínico e representa um novo padrão de cuidados para doentes com CPMRC» link.
Concordar-se-á que não é fácil compaginar as conclusões da EMA, do insuspeito NICE e da NCCN com as posições assumidas para justificar a não-adopção plena da abiraterona pelo SNS -- o que impede considerá-la no formulário --, nas indicações com que foi aprovada pela EMA. De facto, a defesa pelo MS da «qualidade dos tratamentos com medicamentos» e a necessidade de «assegurar que os doentes não sejam expostos a riscos desnecessários e superiores a qualquer benefício de que possam vir a usufruir» são inatacáveis, mas não parece, à luz do que acima ficou dito, que o tratamento com abiraterona exponha os doentes a riscos desnecessários e superiores a qualquer benefício de que possam vir a usufruir; pelo contrário, se procurarmos «a melhor evidência científica verificada até ao momento», que o MS reivindica como base para a criação do Formulário Nacional do Medicamento, encontramos que, para o CHMP, «os dados do estudo COU-AA-302 demonstram vantagens significativas e clinicamente relevantes» da abiraterona, razão pela qual, «tendo em conta os dados de qualidade, segurança e eficácia apresentados», considerou «existir uma relação benefício-risco favorável» no medicamento, «capaz de melhorar a sobrevivência e atrasar a progressão da doença».
Por sua vez, o NICE concluiu que «a abiraterona oferece uma alteração qualitativa no tratamento», e as guidelines da NCCN reconhecem que ela «representa um novo padrão de cuidados para doentes com CPMRC», o que dificilmente se coaduna com a afirmação do presidente do IPO do Porto, Laranja Pontes, de que «é um medicamento novo, mas não inovador», e de que a sua não-inclusão no formulário «não tem nada a ver com custos»; e contraria a alegação de que os benefícios são «reduzidos» (Francisco Ramos, presidente do IPO de Lisboa) ou «marginais» (Laranja Pontes).
No que respeita a segurança, são tranquilizadoras as conclusões do CHMP da EMA, já referidas, e do NICE: «A abiraterona é geralmente segura, e qualquer reacção adversa associada é tolerável».
Contenção de custos
Assim, no caso vertente, a contenção de custos é o que sobrevive da argumentação empregue para manter a abiraterona (e outros medicamentos) no limbo -- a edição do Expresso do passado dia 05 noticia, invocando fonte do MS, que, «por contenção de encargos com medicamentos», continuam sem chegar aos hospitais públicos 31 novos fármacos (para tratar asma, hipertensão, epilepsia ou diabetes), já com visto técnico e económico para serem utilizados de forma generalizada link. O presidente do IPO do Porto desmentiu-se, aliás, a si próprio, ao afirmar que a não-inclusão da abiraterona no formulário «não tem nada a ver com custos», por um lado, e, por outro, ao revelar que a Janssen «não quis apresentar o estudo fármaco-económico que é necessário para a sua (abiraterona) introdução no SNS» (Público, 5/8). No Reino Unido, a Janssen propôs ao NICE um desconto no preço; não sabemos se terá tomado idêntica iniciativa em Portugal.
Ninguém ignora que o País está sob um programa de resgate financeiro, que as metas da troika são exigentes, que os cortes impostos na despesa são brutais. Em suma, que o Ministério da Saúde, como os outros, se debate com difíceis opções. Será impossível explicá-las apenas pelos seus verdadeiros fundamentos? Não; foi o que fez a abençoada fonte contactada pelo Expresso; não se pronunciou sobre eficácia e efectividade, ou magnitude de benefícios para os doentes. Disse, simplesmente, que não há dinheiro.
Ah, mas no Ministério da Educação, há. O ministro Crato propõe-se apoiar financeiramente a frequência de escolas do ensino particular e cooperativo por parte de todos os alunos do ensino básico e do ensino secundário, cujos pais o desejem, isto é, dispõe-se a pagar duas vezes os dois tipos de ensino: público e privado. Peça-lhe algum, Dr. Paulo Macedo, que redundâncias destas só para ricos...
Em tempo: Leio no Expresso do passado dia 17 que «o Estado dá aos funcionários públicos doentes com cancro medicamentos que recusa aos restantes portugueses. Nos hospitais públicos, os médicos só podem prescrever terapêuticas aprovadas após um demorado processo, enquanto nos hospitais privados paga, na íntegra, aos beneficiários da ADSE os remédios logo que entram no mercado nacional.
«O Ministério das Finanças, responsável por este sistema de protecção social dos funcionários públicos do sector administrativo até 2014, confirma a discrepância de critérios. E revela até que as comparticipações a 100% para os antineoplásicos, incluindo os inovadores, são extensíveis a outros medicamentos (...) Por exemplo, a abiraterona, para o cancro da próstata metastizado, recusada a doentes em vários hospitais públicos, incluindo nos três centros do Instituto Português de Oncologia, e que ainda está em avaliação pelo Infarmed para comparticipação, é dada aos beneficiários da ADSE nos hospitais privados desde que começou a ser comercializada em Portugal, em Outubro de 2011» link.
Não, não vou citar o consabido aforismo do Animal Farm, de Orwell; limito-me a notar que, afinal, contrariamente ao que nos pretendem fazer crer, os estudos de fármaco-economia nem sempre são indispensáveis. E lembro uma história contada pelo Dr. Amaral Canelas no 9.º Congressso Nacional das Unidades de Oncologia, em Maio último.
Foi quando o trastuzumab passou a ser utilizado no cancro da mama. Por alturas de uma reunião médica em Copenhaga, o medicamento já tinha sido autorizado no Serviço Nacional de Saúde da Holanda, mas na Dinamarca ainda não, e, por isso, doentes dinamarquesas iam à Holanda fazer o tratamento. «Mas aqui, na Dinamarca, se a doente pode pagar o tratamento numa instituição privada, por que o não faz?», perguntou o português. «Porque aqui ou é para todos ou não é para ninguém».
Algo val mal no reino de Portugal...

João Paulo de Oliveira, Editor do «Tempo Medicina»

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