Quando o primeiro-ministro deu conta do que se estava a passar, tinham-se passado três anos e a equipa da saúde do seu governo não mostrava capacidade de liderança para gerir
a política de saúde – andava aos solavancos, geriam-se rotinas e conflitos –, percebeu então que mais umas semanas e o céu caia-lhe em cima. Do que ficou desse tempo, embora contrafeita foi a tomada a decisão de nomear uma comissão para elaborar os termos de referência da revisão da Lei de Bases da Saúde, já no limite do admissível, quando havia bastante tempo que o assunto estava na agenda política, uma vez que se tinham criado as condições para alterar o que tinha trinta anos e dera uma importante contribuição para desequilibrar as relações entre o sector público e o sector privado.
Ainda foi ensaiada uma reforma do Serviço Nacional de Saúde para a qual foram nomeadas equipas sectoriais. À exceção da equipa dos cuidados continuados, que conseguiu desenvolver um guião estratégico para o sector, pouco foi acrescentado à herança do governo anterior. Dessa reforma ficou ainda a criação do Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados (Despacho 3618-A/2016, de 10 de março) e a criação, na Direção-Geralda Saúde, da Divisão de Literacia, Saúde e Bem-Estar.
A liberdade de escolha, a medida que se quis fazer acreditar que iria resolver o acesso aos cuidados de saúde, sobretudo aos cuidados hospitalares, dada a situação em que estes cuidados se encontravam, nem panaceia foi, antes uma futilidade gestionária que manteve tudo
na mesma. Serviu principalmente para tentar mascarar a ausência de respostas de proximidade. Quando, a certa altura, foi feito o seu balanço, verificou-se que a escolha se fazia
em torno dos hospitais mais próximos da residência dos doentes, os quais rapidamente deixavam de conseguir respostas oportunas e atempadas, dado o esgotamento dos serviços. Além disso, a medida deu um sinal que num serviço público não deve ser dado; neste caso, a concorrência entre prestadores, gerando desigualdades entre aqueles que se podiam deslocar e os que não tinham recursos para o fazer. Feitas as contas, a espera continua a ter longos meses, senão mesmo longos anos.
Passados os primeiros meses, quando o benefício da dúvida ainda estava em vigor, e as expectativas faziam o seu caminho, aguardando-se que no dia seguinte as boas novas chegassem, a partir de certa altura, o epítome do gabinete passou a ser “Somos todos Centeno”. Esse foi o argumento encontrado para, à falta do dinheiro, a tática passasse a ser a gestão corrente do sector.
Não houve nem a vontade nem o empenho para se compreender que a solução política que tinha passado a governar o país mais tarde ou mais cedo iria exigir que se realizassem as mudanças que há muito se impunham mas não tinham encontrado a conjuntura política que lhe fosse favorável. E nas últimas quatro décadas a que tinha passado a vigorar desde 26 de novembro de 2015 era a que oferecia melhores condições para que se concretizasse. Pelo contrário, assistiu-se a uns penosos três anos de arrastar de pés.
Quando a 16 de agosto de 2017, tinham passado vinte meses desde que o governo tinha tomado posse, é tornado público o Manifesto pela nossa saúde, pelo SNS, com 1001 subscritores, no qual se afirmava que a atual situação no sector da saúde, quase a meio do mandato do governo, permanece sem sinais de mudança que alterem a natureza do modelo de política de saúde, promovendo a saúde dos portugueses, reabilitando e requalificando o Serviço Nacional de Saúde. O qual dificilmente se verificará sem a contribuição ativa dos actores sociais e políticos das comunidades. Embora sumário o diagnóstico que se apresentava da saúde dos portugueses naquele Manifesto era tudo menos animador:
(1) com 70% de esperança de vida saudável (2015), os portugueses tinham o mais baixo valor dos países do sul da Europa – Espanha, França, Itália e Grécia;
(2) com 32% de esperança de vida saudável aos 65 anos, os portugueses ficam bastante aquém dos valores daqueles países;
(3) no grupo etário 16-64 anos só 58% da população considerava que a sua saúde era boa ou muito boa, quando na Grécia ou em Espanha é superior a 80% (2015);
(4) no grupo com mais de 64 anos aquela percepção é de 12%, sendo em Espanha e França superior a 40%;
(5) mais de 50% da população tem excesso de peso;
(6) em 2016 verificou-se o maior excesso de mortalidade da década, correspondente a 4 632 óbitos.
Foi este Manifesto o principal detonador da intensa discussão sobre política de saúde que a partir de então passou a ter lugar no país, para a qual o governo pouco ou nada contribuiu, sempre numa postura defensiva e reativa. O Manifesto era a expressão de que se não havia vontade política para se tomarem medidas transformadoras ao menos que se discutissem a natureza e o sentido dessas medidas. E foi isso que aconteceu. Na comunicação social, em reuniões, assembleias, congressos, convenções, o debate passou a fazer parte da ordem do dia político. Com a emergência das lutas sindicais dos vários sectores profissionais, sem que do lado do governo houvesse disponibilidade para encontrar soluções satisfatórias, mesmo no plano do diálogo institucional, a situação passou a tornar-se insustentável e, por isso, foi sem surpresa que, em 14 de outubro de 2018, se assistiu à mudança da equipa do Ministério da Saúde.
A um ano de eleições para o parlamento e com uma herança particularmente turbulenta, à nova equipa faltava-lhe tempo para equacionar e acomodar as medidas que em devido tempo não tinham sido tomadas nem consideradas. Restava-lhe resolver os conflitos laborais e gerir politicamente a revisão da Lei de Bases da Saúde. As mudanças que deviam ter tido lugar teriam de aguardar por melhores dias, porventura para o mandato seguinte, caso os resultados eleitorais de outubro replicassem o cenário de 2015. No caso da Lei de Bases da Saúde, a decisão de não ter sido levado em linha de conta o trabalho realizado pela Comissão nomeada pelo governo, e entregue em 13 de setembro de 2018, deu lugar ao aproveitamento político por parte dos partidos da oposição e dos sectores favoráveis à legislação de 1990, tendo-se gerado um clima de litigância e suspeição que só terminou praticamente com a votação final da proposta de Lei apresentada pelo governo, após um longo processo de auscultação em sede do grupo de trabalho nomeado para acolher e dar conformidade aos diversos pontos de vista dos atores sociais.
Não fossem as movimentações à margem da João Crisóstomo e o sector da saúde encontrava-se hoje em piores condições do que quando foi herdado do anterior governo. Na maior parte do tempo o que o caracterizou foi a inércia, foi deixar tudo como estava para que o tempo fizesse o resto. Se a falta de dinheiro para recuperar o que deixou de ser feito foi uma realidade, as medidas organizacionais que podiam ter sido tomadas e que tinham custos marginais nunca foram tomadas. E não foi por não se ter alertado para o facto que não foram tomadas.
Foi porque não se quis.
É lícito afirmar que, à parte uma ou outra medida, da qual a aprovação da Lei de Bases da Saúde é o melhor exemplo, perderam-se meses a mais em tergiversações, retórica e taticismo. Contudo, se a lição tiver sido suficientemente aprendida, o próximo ciclo governamental pode ser aproveitado para, de uma vez por todas, se procederem às mudanças que há anos batem à porta.
Cipriano Justo, OPSS - Relatório de Primavera, 2019 link
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